As fortes chuvas castigavam Vilavelha há mais de três semanas. Os navios no grande porto sacudiam graças aos ventos e as ondas que quebravam contra seus cascos, fazendo a madeira ranger. As poucas pessoas que se aventuravam sob a chuva se protegiam debaixo de pesadas capas e corriam para amarrar os cordames para prender os barcos no cais.
No ponto mais alto da Ilha Batalha, o luminoso Grande Farol localizado sobre a Torralta, sede da Casa Hightower, iluminava a noite junto a relâmpagos que constantemente riscavam os céus. O fogo brilhante, sempre mantido aceso, podia ser visto a milhas no oceano e guiava navios para a segurança do porto, mas naquela noite de nuvens pesadas e chuva grossa, ele mais parecia um grande fogo fátuo a rondar os céus da cidade.
Nas vielas escuras da grande cidade, alguns poucos soldados da milícia faziam sua ronda, chapinhando poças e apertando seus mantos, esperando ávidos o fim de seu turno para poder seguir para a estalagem mais próxima e se secar perto de uma lareira, tomando um forte trago de vinho condimentado com especiarias para esquentar o corpo.
A parte baixa da cidade, próxima ao porto, era a mais castigada pelos fortes ventos marinhos e grandes ondas. As construções, em sua grande maioria de madeira, balançavam e rangiam, ameaçando cair a qualquer momento, e algumas já o tinham feito. A palha que cobria a muitas delas estava ensopada e pouco cumpria seu papel de proteger da chuva.
Dos setores da cidade, o Baixio das Sardinhas, mais pobre deles, era o mais afetado e encontrava-se em frangalhos. Poucas luzes podiam ser vistas nas aberturas e frestas das paredes de madeira. A água que escorria dos telhados para os becos estreitos se acumulava no chão de terra, fazendo dele um lamaçal. O fedor de maresia, mofo e peixe estragado impregnavam todo o local e se a chuva continuasse sem dar trégua, com certeza todas aquelas casas seriam lavadas para o mar.
Um homem enfrentava aos tropeções a chuva e a lama, escorregando pelos becos sinuosos até chegar a uma pequena casa em frangalhos no fim de uma viela. Abrindo a porta de madeira empenada pelo excesso de umidade com dificuldades, ele sacudiu sua capa e largou um feixe de lenha molhada no chão. As gotas pesadas batendo nas paredes de madeira e no telhado de palha e os trovões que faziam abalar toda aquela humilde casa só deixavam de ser ouvidos quando um dos moradores tossia forte até escarrar sangue, mal que afligia a todos há dias.
Eram quatro tentando se aquecer e se proteger daquela umidade. Antes seis, mas o velho avô e a bebê recém-nascida tinham morrido devido à febre e toda a tosse e dores que vinham com ela.
― Beba um pouco do caldo de carne, meu filho. A tosse vai diminuir se você comer ― disse com voz fraca a senhora daquela casa, uma mulher na casa dos trinta anos, mas tão magra e pálida que aparentava mais de cinqüenta. Seu puído vestido com um avental desbotado estava manchado aqui e acolá com o sangue que o pigarro trazia, enquanto sua pele apresentava bubos azulados e marcas por toda ela.
― Eu não quero, Mã. Num tô com fome ― sussurrou o pequeno garoto, magro e fraco tal que não conseguia se manter acordado por muito tempo. A cama suja e úmida e o amontoado de colchas de retalho pouco serviam para evitar o frio e o tremor de seu pequeno corpo que ardia em febre e apresentava os mesmos sintomas da mãe.
― Você tem que comer pelo menos umas colheres, Marcus ― disse o rude pai, enquanto jogava um pouco de lenha úmida que acabara de trazer na fogueira, fazendo uma fumaça que irritava os olhos e fazia a tosse voltar, mas pelo menos mantinha a casa aquecida.
Enquanto o homem mexia o caldeirão e tomava uma colherada do caldo de carne ralo, a filha mais velha do casal, Amara, esvaziava panelas cheias de água das goteiras, voltando a repô-las para evitar que o chão ficasse mais molhado que já estava. Dos quatro que habitavam aquela caserna era a única que não apresentava os sintomas da doença que a todos afligia, mas mesmo assim o desgaste causado pelos vários dias de chuva e a parca alimentação minavam suas forças a cada dia.
― Se a gente continuar aqui, a casa vai cair na nossa cabeça, Mã ― resmungava a jovem moça, enquanto lavava o rosto em uma das panelas de água ― Todo mundo ‘tá indo pra Cidadela. Dizem que os meistres sabem como curar a doença...
― E como nós vamos sair daqui com seu irmão deste jeito, Amara? ― esbravejou a mãe, largando a colher dentro do prato raso ― Seu pai tentou conseguir um cavalo pra carregar nossas coisas e seu irmão, mas não tinha nenhum.
Todos ficaram em silêncio na casa, pensando na dificuldade que seria atravessar todo o Baixio das Sardinhas carregando seus poucos pertences e Marcus, que mal conseguia manter os olhos abertos. A chuva não parava e a lama se acumulava lá fora, sem contar que as vielas que antes eram calçadas com pedras regulares tinham ficado esburacadas graças as chuvas intensas, e estes buracos cobertos da água barrenta se tornava um perigo a mais para a caminhada. Subir a grande ladeira que levava para fora daquela pocilga seria difícil com eles em plena saúde, mas fracos como estavam devido a forte febre e o sangramento seria tarefa quase impossível, mas a expectativa de melhorar daquela doença que os afligia há dias parecia dar um pouco de ânimo aqueles corpos cansados.
― Vamos para a Cidadela! Eu carrego o Marcus e vocês trazem alguma comida e roupas ― disse por fim o homem, se levantando e voltando a vestir a capa. Seguindo até sua cama, ele enfiou a mão no meio da palha que servia como colchão, retirando dali um pequeno saco. Conferindo as parcas moedas em seu interior ― oito cobres e duas pratas, com o relevo gasto de tanto passar de mão em mão ― ele ora silencioso a Mãe para que elas sejam suficientes para curar a todos. Atando o saco com as moedas na cintura junto à adaga de limpar peixe que dali pendia, ele seguiu até o filho e com cuidado, enrolou o menino em uma grossa manta de couro cru.
― Pra onde a gente vai, Pá? ― sussurrou Marcus, enquanto era levantado pelo pai.
― A gente vai curar sua tosse, filho ― respondeu esperançoso o homem, enquanto ajeitava o magro corpo do filho de forma que se tornasse o menos incomodo para carregar.
Assim que todos estavam prontos, abriram mais uma vez a porta de madeira e saíram para a viela, com a chuva a castiga-los. A água acumulada já passava de seus tornozelos e dificultava o caminho, fazendo-os escorregar constantemente enquanto progrediam a duras penas. Por duas vezes o pai escorregou e quase se estatelou no chão levando junto o fraco Marcus, mas por pouco conseguiu se apoiar nas estruturas dos outros casebres mantendo-se em pé.
Depois de muita dificuldade, conseguiram chegar até a ladeira que os tirava do Baixio. A água descia em grande volume, fazendo a lama e o cascalho escorrerem como se fosse uma gigantesca cascata turva. Todo tipo de lixo era lavado ladeira abaixo, na direção do porto. Ratos subiam pelos cantos e frestas, guinchando e vencendo as águas com dificuldades, buscando a mesma salvação ansiada por eles.
O pai buscou um pedaço de madeira solto e o utilizou como bengala, auxiliando na subida daquela ladeira esburacada e coberta por pedras úmidas e lodosas, cheia de todo tipo de sujeira carregada pela água. Logo atrás, a mãe e a filha se arrastavam com dificuldades, escorregando algumas vezes e se estatelando contra a lama, mas logo depois se punham em pé com persistência, buscando o fim da ladeira e a muralha intermediária que separava o Baixio das Sardinhas do distrito comercial da cidade. As tochas que marcavam o portão de passagem já eram vistas, bem como os vultos dos guardas que guarneciam a muralha de mármore negro.
Pouco acima da metade da ladeira, um torrão de solo solto fez o pé do homem escorregar e ele não conseguiu se manter em pé mesmo com a bengala. Por sorte, conseguiu virar o corpo de forma que seu flanco direito se chocasse contra o chão violentamente, mas protegendo com isto o frágil corpo de Marcus. As duas mulheres ajudaram o pai a se levantar e juntos, venceram o resto da ladeira, chegando até a passagem coberta dentro da muralha intermediária.
Lá, o chão calçado encontrava-se em situação melhor que o piso da cidade e a arcada sobre suas cabeças os protegiam da chuva. Arfando e tossindo bastante, os três se sentaram no piso empedrado e bastante molhado, buscando restaurar as forças e continuar até a Cidadela. A parte difícil tinha sido vencida, bastava agora seguir pelas ruas pavimentadas e logo estariam sobre o teto alto da casa dos meistres, se aquecendo a lareira, comendo alguma coisa quente e sendo tratados pelos sábios homens que lá habitavam.
Enquanto descansavam, Amara se lembrou da única vez em que estivera naquela magnífica casa do saber junto ao seu irmão, então um moleque de dez anos. Eles seguiram até a casa dos meistres a mando do pai, levando peças suficientes para comprar um mapa da região costeira para repor aquele perdido quando o Marcus, deveras arteiro antes da doença, derrubou um pote de nanquim sobre o couro, manchando-o.
Ela se lembrava de atravessarem a grande ponte de pedra sobre o caudaloso Rio Vinhomel, chegando na ilhota onde a Cidadela tinha sido construída. Suas torres e cúpulas de pedra cinza-escura coberta de musgo eram ligadas com pontes arqueadas feitas com a mesma pedra. Em todo lugar podiam ser vistos corvos, sejam dos comuns corvos pretos como dos corvos brancos e maiores, estes mais raros, mas ainda assim em um bom número. Os bichos crocitavam e voavam por toda parte e seus ninhos podiam ser vistos em vários locais da cidadela.
Mas o que mais tinha chamado sua atenção era o par de gigantescas esfinges de pedra verde como folhas de uma árvore, com os corpos dos leões encimados por asas de águias entreabertas e as caudas de serpentes de aspecto macabro. Uma das esfinges levava o rosto de um belo homem, enquanto a outra ostentava uma linda face de mulher, que não condiziam com aquele corpanzil monstruoso. Marcus tinha ficado com medo das estátuas e dissera que tinha visto uma delas olhar pra ele.
Assim que entraram pelos gigantescos portões de metal escuro, repararam nas várias gravuras em alto-relevo demonstrando os mais estranhos e diversos símbolos, quase todos desconhecidos por eles. Entrando no gigantesco salão retangular, com grandes janelas e candelabros espalhados por toda parte, se depararam com dezenas de barracas de todo tipo, com muitas pessoas circulando entre elas. Logo perceberam um belo rapaz, de pele branca, profundos olhos azuis e cabelos loiros cortados bem rente, vestido com seu manto marrom bem limpo e novo perto dos outros irmãos que estavam no salão, se postava à frente das barracas de forma atenciosa, com um sorriso no rosto e informando quando perguntado onde cada um dos visitantes encontraria o que procurava. Quando questionado sobre onde poderiam adquirir o mapa, ele logo respondeu com um sorriso radiante:
― Vocês estão no Lar dos Escribas. Aqui podem adquirir por uma módica quantia os serviços de escribas, comprar livros e mapas. Os mapas ficam lá no fundo da sala, nas barracas de cor verde ― disse de forma cortes o jovem, com seus belos olhos azuis fitando de forma lasciva a moça enquanto apontava para um grupo de barracas cobertas por um tecido grosseiro tingido de verde.
Diziam que os meistres podiam ler a mente das pessoas olhando em seus olhos, tamanho seu conhecimento. Isto fez Amara corar, visto que ela tinha achado o rapaz muito bonito para vergar o manto de meistre, desperdiçando assim tanta beleza com os votos que todos os meistres tinham que fazer. A sorte é que Marcus logo chamou por ela para ver um corvo que falava algumas palavras, tirando-a daquela situação incômoda.
O menino se maravilhava a cada “Milho”, “Meistre” e “Carta” que o corvo crocitava. Marcus batia palmas a cada acerto, fazendo um velho meistre com um pesado colar de elos dos mais diversos metais que estava próximo rir com a diversão e alegria do jovem.
― Este é o Arquimestre Walgrave, o Mestre dos Corvos ― dizia o jovem noviço, se aproximando de Amara e parecendo se divertir com o fato da menina ficar sem graça ― Ele é o responsável por todos os corvos da Cidadela, o que é uma tarefa das mais importantes. Dizem que ele esqueceu mais coisas sobre o trato dos corvos que os outros meistres um dia souberam ― disse ele por fim.
Amara conseguiu se controlar, agradecendo com um gesto de cabeça os préstimos do noviço e levando Marcus pela mão, mesmo com o desapontamento por deixar pra trás o corvo, até as barracas de cor verde para comprar o mapa do pai.
― Como assim não vão abrir o portão? ― gritou o pai de Amara, retirando-a de suas recordações.
Enquanto a mãe estava com Marcus tossindo nos braços, seu pai estava discutindo com um soldado, balançando de forma enérgica o braço na direção do portão de ferro que os impedia de acessar o distrito comercial.
― Ordens do Lorde Quenton Hightower, homem. Afaste-se da grade e volte para sua casa. Todos os portões ‘tão sendo fechados e ninguém vai passar ― respondeu um guarda de forma rude, enquanto empurrava seu pai com sua lança. Dava pra ver uma torre branca pintada desgastada no colete de couro curtido sob a pesada capa de chuva. Na cabeça o homem levava um elmo de ferro enquanto uma espada curta e uma adaga descansavam na cintura.
― Não posso voltar pra casa! Tenho que levar minha família para a Cidadela ― implorava o homem, com o rosto marcado pelo desespero. Ver seu pai daquela forma deixou Amara assustada. Seu pai era sério, às vezes rude, mas naquele momento demonstrava toda a preocupação de um pai ante sua família necessitada.
― Já disse que não. Volta logo para o Baixio que lá sim é seu lugar ― sorria o homem, exibindo dentes podres naquela cara horrenda enquanto apontava a lança para o peito de seu pai.
Virando com um uma mistura de ódio e loucura marcando seu rosto, Amara pode ver que seu pai não estava com controle de suas emoções. Em um lampejo que a menina mal percebeu, o pai sacou a adaga que levava na cintura, avançou contra o soldado e, após desarma-lo de sua lança, levou a ponta da lâmina contra o pescoço do homem.
― Abram o portão ― gritou ele para a caserna dos soldados. Logo dois homens saiam da sala de guarda, um armado com sua lança e outro com uma besta carregada.
― Mata este desgraçado, Corvis. Mata ele e a maldita família dele ― gritava o soldado rendido, com a lâmina da adaga cortando de leve seu pescoço, fazendo escorrer um filete de sangue quente.
Seu pai encostou as costas na parede, impedindo que os soldados o cercassem. Ele era muito mais forte que o soldado e a adaga empurrada contra a garganta tirava do homem qualquer chance de se livrar.
― Afasta e abre o portão ― gritava seu pai. Nos braços da mãe, Marcus tossia de forma incontrolável, deixando ainda mais tensa a situação. O corpo magro e fraco do menino se contorcia descontrolavelmente.
― Não vamos abrir o portão e se você não largar o Horace, eu varo aqueles ali com virotes ― ameaçou o soldado com a besta, balançando a arma na direção de Amara, Marcus e sua mãe.
― Espere, não atire. Eu solto ele ― disse por fim seu pai, abaixando a adaga e soltando o soldado rendido, que logo correu na direção dos outros.
― Muito bem, muito bem ― disse o homem da besta, sorrindo e olhando de forma pérfida para todos. Com um rápido movimento, o soldado mirou a arma contra seu pai e disparou um virote certeiro contra o peito.
― Pá! Não, por favor! ― gritou Amara enquanto corria na direção do corpo do pai. Sua mãe gritou junto, apertando Marcus contra o peito. Antes de chegar em seu pai, tombado no chão com a mão coberta de sangue na haste do virote, o soldado que fora feito de refém pelo pai agarrou ela pelos cabelos e a imobilizou, aproximando sua boa cheia de dentes podres do ouvido dela.
― Nada disso, mocinha. Seu velho ‘tá morto e eu vou cuidar direitinho de você ― sorriu o homem, arrastando Amara para dentro da caserna. A última visão que a moça teve de sua mãe e irmão foi a do soldado se aproximando deles com a lança erguida e a baixando com força. Os gritos dos dois foram o último som ouvido por ela antes da porta ser trancada e ela ficar sozinha com os três soldados.
Aqueles que moravam perto da passagem para o Baixio das Sardinhas ouviram gritos de desespero e súplicas durante toda à noite, afogadas por vozes bêbadas e risadas sinistras. Mas assim como tudo naquela cidade, logo os sons foram lavados pela chuva que não parava de cair.
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